quarta-feira, 29 de junho de 2011

Levantou muito irritada. O barulho era tão alto que interrompeu seu sono. Abriu com força a porta do quarto, pronta para soltar os cachorros no primeiro outro que visse e começou a andar pela casa. Na sala, não viu ninguém. No quarto dos pais, ninguém. Cozinha, nem um pio. Todos tinham saído, menos o barulho. Pensou que podiam ser os vizinhos. Foi olhando as janelas: escuras. Descendo as escadas e nada. De repente, todos tinham sumido. O barulho sempre a incomodou, todos os dias. Achava que ele era dos outros e por essa razão nunca lhe deu a devida atenção. Mas não havia ninguém e o barulho estava cada vez mais alto. Pensava antes que, quando ficasse sozinha, ficaria em silêncio, em paz. Mas aconteceu justamente o oposto. Foi quando se viu totalmente só que pode perceber que o barulho vinha de dentro dela. O que a incomodava não estava nos pais, nos vizinhos, na carreata passando na rua, estava bem ali, dentro do seu peito. Esse barulho de dentro é diferente. Não se ouve só com ouvidos, é preciso mais atenção para entender de onde vem e a que veio. Como alcançar o silêncio? Era preciso ouvir o barulho dos outros. Sim, ele não é exclusividade sua. Todo mundo tem barulho interno, é natural do ser humano, por mais que alguns, inclusive ela própria, tenha problemas com essa idéia de natureza humana. Ele vem junto com a consciência, de brinde. É preciso senti-lo, saber compreendê-lo porque somente assim, juntos, nessa harmônica sinfonia de barulhos, podem ficar todos em silêncio e, finalmente, em paz. 

ombreiras

Depois de muito postergar, resolveu arrumar seu armário. Que bagunça! Doía os olhos. Mais ainda, doía a cabeça. Sempre fora uma pessoa desorganizada, preferia assim a viver de forma meticulosamente ordenada. Mas às vezes é preciso tirar tudo do lugar, mudar tudo de lugar, se transportar para outro lugar. Separou tudo que não servia mais para se desfazer. De repente percebeu que podia se desfazer de tudo aquilo. Lógico, existiam algumas coisas mais especiais, mas que eram impossíveis de usar. Era preciso se desfazer dessas também. O que dificultava o processo era saber o quanto é difícil achar roupas, sapatos, pessoas que encaixem tão bem. Podia guardá-las e de ano em ano experimentá-las para ver se voltavam a caber, lembrando dos momentos incríveis e especiais em que estava com ela. Se sentiria bem por uns instantes e logo voltariam a ocupar o canto, ou praticamente metade, do armário. Dessa vez achava melhor abrir espaço para novas lembranças. Depois de ver tudo espalhado pelo chão, pela cama, cadeira, cabeça viu quanto trabalho daria arrumar sua vida. Um amigo riu e lhe disse: “tem bagunças que é melhor não mexer.” Talvez. Mas é bom mudar o armário de vez em quando, para não ficar ultrapassada. E, apesar de tudo, guardar certas peças bem dobradinhas, no fundo da gaveta, com a esperança de, cedo ou tarde, voltarem à tendência.

sábado, 25 de junho de 2011

Há uns meses apareceu por aqui uma visitante. Nunca vou esquecer o dia que ela chegou. Desde então, sempre que acordo ela está por perto. Quando toca Frejat ou Jorge Ben ela canta com maestria. No bar, ela ocupa sua cadeira. Senta ao meu lado na sala de aula.  Mas nada diz, não interage. Sua presença me incomoda. Às vezes me distraio e ela some por uns instantes, mas logo reaparece. Ela é a sua falta. Vistante inconveniente. Espaçosa  demais. Me trouxe um agrado, um presente muito especial, para que fosse mais fácil aceitar sua presença. Um sorriso enorme, um abraço caloroso e o mais alto astral que já vi. É a lembrança que tenho de você, amigo querido. Essa visitante veio sem data de partida. Tudo que posso fazer é aprender a conviver com ela.

sexta-feira, 24 de junho de 2011

transmigração corrente

Toma banho na água que corre. A água corre e bota tudo pra correr.  O sol esquenta meu corpo enquanto o não-silêncio da natureza me embala quando fecho os olhos. Como transmitir essa energia? Voz, ruído. Não. Telepatia. Como se por um momento minha mente entrasse na sua, você vestisse minha pele, colocasse meus olhos, meus ouvidos, encaixasse meu coração no seu peito e pudesse, só assim, entender o que não dá para explicar. 

quinta-feira, 23 de junho de 2011

tac tic (se automatizar, a ideia se perde)

Não me reprime com esse olhar,
seu certo e errado é errado para mim.
Quem disse que não? Por que não?
Quero dormir até mais tarde, beber até mais tarde, transar até bem cedo, cedinho.
As coisas não têm hora, teimosia é querer dar hora a elas! E hora errada! Tem que acertar esse relógio.
Cinco minutos é muito mais do que horas.
Meu tempo conta diferente. Não conta em horaminutosegundo.
 Meu tempo não é questão de tempo. 

segunda-feira, 20 de junho de 2011

Reflexões de um eu pós-moderno (parte I)

Picava cebolas para fazer o almoço. Chorava. Mas o choro não era por causa das cebolas ou qualquer irritação nos olhos. Era irritação, mas de outro tipo.
Por que não conseguia escapar de tudo aquilo? Precisava de ajuda. De um sequestro. Precisava que alguém fizesse por ela o que não conseguia fazer sozinha. Mas não podia ser qualquer alguém, tinha que ser um alguém específico. Deveria fugir com ela e ficar, sem largá-la em qualquer beira de estrada quando o primeiro quebra-molas aparecesse. Pensando mais a fundo, chegou à conclusão que cedo ou tarde ficaria sozinha. Tinha que jogar as muletas para o alto, só assim descobriria o potencial de suas próprias pernas. Não podia esperar mais. Esperar só atrasaria o inevitável. Uns diziam que era crise psicológica, da pós-modernidade. Honestamente, a classificação era o de menos.